28 de set. de 2020

Divagações Oldschool: Art of Lying (ou "Foi culpa do Neo-Geo")

 

No início dos anos 90 ninguém conhecia o termo "arcade"- pelo menos ninguém que eu conhecia! Para nós era fliperama mesmo, ou simplesmente "flipper". "Vamos no flipper?" ou "Bora no flipper?" eram frases comumente ditas e escutadas nos tempos finais das aulas ou no momento da

 saída das escolas. E tinha máquina para tudo que é lado... tinha "flipper" na padaria; tinha "flipper" no botequim  onde meus amigos compravam cigarros para o pai ou para a mãe mesmo sendo menores de idade; tinha "flipper" no bar do clube; tinha "flipper" nas galerias comerciais, como aquelas que eram comumente chamadas de "passarelas" por fazerem uma ligação entre duas ruas diferentes... enfim, deu para entender.

E onde tinha "flipper", tinha uma rodinha de moleques em volta, assistindo quem estava jogando, em especial perto da hora do almoço ou lá pelas seis e pouco da noite. Eu estudava pela manhã, então em geral era no primeiro horário que eu jogava ou fazia figuração nas rodas de guris.

E não era só nos "flippers" que jogávamos. Era comum locadoras também disponibilizarem consoles variados para serem jogados a preços módicos. Nas locadoras eu jogava mais aos sábados e segundas-feiras, quando alugava ou devolvia cartuchos, e durante a semana eu volta meia dava um pulo em algum lugar que tivesse "flipper" e ficasse no caminho de casa. Em geral, eu não demorava muito e chegava em casa antes que alguém percebesse a demora e ficasse preocupado.

Em geral... 

Nem sempre...

Um das poucas vezes que fui jogar em uma locadora durante a semana  foi uma dessas vezes do "nem sempre". Aliás, foi A vez!

Dois colegas de classe comentaram que uma locadora não tão próxima agora estava com um Neo-Geo. Um Neo-Geo! E não era só isso! A locadora tinha o jogo "Art of Fighting" para jogar no tal Neo-Geo! Eu estava doido para jogar esse jogo desde que  tinha lido sobre ele em revistas, mas nao tinha aparecido oportunidade até então.

Aí meus colegas, o W. e o B.T, chamaram-me para ir lá. A locadora ficava uns 15 ou 20 minutos da escola- no caminho oposto ao meu!

Ou seja, só a ida e volta acrescentaria de meia hora a quarenta minutos no meu tempo de chegada em casa (fora o tempo que eu gastaria jogando ou vendo os outros jogarem). Não tinha como dar certo, mas... quem disse que eu pensei nisso na época?

Sequer cogitei! A vontade de jogar, ou pelo menos ver ao vivo, "Art of Fighting" falou mais alto e eu simplesmente pensei algo como "ah, vou rapidinho, jogo uma vez só, assisto mais só uns cinco minutinhos e volto correndo. Tá tranquilo".

Quase três da tarde e eu ainda estava na locadora. Vi um dos meus colegas jogar, joguei uma vez, vi o outro joar e depois as jogadas de alguns desconhecidos. Só me toquei da hora por que alguém perguntou a hora para outro e, por acaso, ouvi o cara responder. O sangue deu aquela gelada , e  na hora falei com os meus colegas. 

Para minha surpresa os dois pareceram não ligar muito... Coisa de quem ficava a tarde toda sozinho em casa enquanto os pais trabalhavam, mas meu caso era outro... minha avó morava com a gente na época e com certeza estava desesperada, cogitando mil desastres e destinos terríveis para mim, sem dar sossego para minha mãe no trabalho, com uma ligação atrás da outra. 

Larguei os dois lá e voltei o mais rápido que pude, chegando a correr em alguns momentos com a mochila pesada batendo nas costas. Eram quase quatro horas quando cheguei. Minha avó quando me viu passar pelo portão veio correndo (em uma velocidade notável para sua idade), já me bombardeando com perguntas freneticas, deixando por último o aviso fatídico.

'"Olha, seus pais estão muito nervosos. Sua mãe está toda preocupada lá no trabalho."

Depois de umas trinta ligações de uma típica avó apavorada não poderia ser muito diferente, afinal.

Como o dano estava feito, pensei em pelo menos minimizar o estrago. Inventei uma história que tinha ido na casa de um colega de classe, o D., que morava no  mesmo condomínio onde morávamos, mas na outra ponta, para fazer um trabalho em grupo, mas que não tinha dado para ligar porque o D. estava com o telefone quebrado, e que depois do trabalho jogamos um pouco de videogame e perdi a hora, só me tocando disso quando a mãe (ou irmã, sei lá de quem falei na hora) havia entrado na sala e comentado que horas eram, daí voltei correndo, mas estava dentro do condomínio e tal, etc. 

Detalhe que o D. sequer tinha ido jogar e não estava sabendo de nada.

Minha mãe ligou pouco depois e minha avó avisou que eu tinha chegado. Fui chamado ao telefone e o esporro começou ali, por cortesia da TELERJ. quando fui inquirido onde estava, repeti a lorota e a situação acalmou um pouco. Meus pais realmente achavam que nosso condomínio era um local seguro. Levei mais um pouco de esporro por telefone e depois uma dose extra ao vivo quando meus pais chegaram em casa, e o caso parecia ter chegado ao fim.

Parecia.

Mas não tinha.

Na manhã seguinte meu pai, como de costume, me levou de carro para à escola (meu irmão mais novo estudava de tarde nessa época) e meu pai tinha o hábito completamente sem sentido de dirigir para à escola por dentro do condomínio cheio de curvas, no lugar de sair e ir pela estrada que margeva o condomínio, a qual era reta e cortava uma boa distância. Volta e meia esbarrávamos com colegas de classe meus pelo caminho e meu pai sempre oferecia carona.

Nesse dia, esbarramos com o D.

Senti aquele calafrio na espinha. "F*deu"- pensei, seguido de uma torrente de todos os palavrões e pragas que conhecia, dirigidos ao coitado do moleque que, inocentemente, só estava caminhando para o colégio.

Meu pai desacelerou o carro e chamou o guri.  D. Veio correndo e sentou no banco de trás. Enquanto eu tentava imaginar um jeito de pôr o infeliz a par da história. O garoto mal sentou no banco e meu pai já foi dizendo:

- "Esse trabalho de escola de vocês quase matou minha sogra ontem, hein? Vocês são tão avoados que só não perdem a cabeça porque está colada"

Foi isso ou algo do gênero. O pobre do garoto não entendeu nada e respondeu com um "Hã?" que já dizia tudo. Ainda tentei consertar a situação, mandando um "Quando perdi a hora jogando videogame contigo depois do trabalho em grupo, cara", e o D. ainda tentou ajudar, exclamando um "Aaahhhh", em uma atuação tão sem talento que nem uma criança de pré-escolar engoliria.

Meu pai pescou no ato que era mentira e o esporro recomeçou. Sem escolha, tive que contar a verdade e só não ouvi mais porque a escola era perto.

Fiquei uma fera com o D., acusando-o (injustamente) de ter estragado minha história. D., por sua vez, conseguiu de forma bizarra tentar ficar se desculpando e justificando ao mesmo tempo que ria da minha cara. E até hoje não sei o que foi pior... ter que contar a história a manhã inteira para umas vinte pessoas diferentes ou a bronca redobrada naquela noite em casa, além do castigo de ficar sem alugar jogo algum no próximo fim de semana e sem poder jogar videogame até segunda ordem.

Mas pelo menos joguei "Art of Fighting". Jogo legal.

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